Sérgio Vieira de Mello: negociador, internacionalista e, sobretudo, exemplo de liderança humanitária

Publicado em 20 de abril de 2020

Duas características fundamentais de Vieira de Mello ganham relevo logo no começo do filme: o compromisso com o trabalho de campo e o profundo engajamento com a realidade local.

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Com Wagner Moura no papel do respeitado alto funcionário da ONU Sérgio Vieira de Mello, o telespectador pode ter uma noção, ainda que superficial, do importante trabalho desse brasileiro internacionalista. Embora com grande foco na vida pessoal do protagonista, em “Sergio” (Netflix, 2020), são destacadas duas importantes missões de Vieira de Mello: sua atuação como chefe da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste (UNTAET), e, por fim, a missão junto ao escritório das Nações Unidas no Iraque, após a invasão dos Estados Unidos.

Duas características fundamentais de Vieira de Mello ganham relevo logo no começo do filme: o compromisso com o trabalho de campo e o profundo engajamento com a realidade local. Essas duas características constituem o motor das suas atitudes, muitas vezes vistas com hesitações por seus colegas de trabalho ou por oficiais de governo. Do ponto de vista institucional, Sergio representa o esforço conjunto e diário das Nações Unidas em manter uma postura independente, a despeito de um histórico conturbado de missões problemáticas, como os casos de Ruanda e da Somália.

Acusações recorrentes sobre a forte ingerência dos Estados Unidos nas atividades da ONU minam a credibilidade da organização, e é constante o empenho de “Sergio” no sentido de se descolar da postura norte-americana e ganhar confiança da população local, especialmente em um contexto conturbado como o da Guerra do Iraque, em 2003.

A convite da administração Bush, a ONU emprestaria credibilidade e legitimidade aos esforços para assegurar uma transição segura à era pós-Saddam Hussein no Iraque. Importa recordar que a coalizão liderada pelos EUA havia abandonado o caminho do diálogo e da negociação no âmbito da mesma ONU, à época da invasão em 2003, optando por ignorar as normas do multilateralismo ao empregar, sem o endosso do Conselho de Segurança, a força militar para afastar a ameaça à segurança internacional representada pelo alegado desenvolvimento de armas de destruição em massa (ADM).

Os riscos de a ONU aceitar o desafio em um Iraque inteiramente desestruturado eram evidentes diante das resistências locais às forças de ocupação, assim como do complexo emaranhado de disputas entre facções locais pelo poder. A própria hesitação inicial de “Sergio” em participar da Missão no Iraque demonstra isso.

É preciso recordar também que, antes do trágico atentado terrorista em Bagdá, que custou a vida do diplomata e de outros funcionários da ONU, Vieira de Mello estava no auge de sua carreira, especialmente depois dos esforços bem-sucedidos no Timor-Leste. Os rápidos minutos dedicados no filme a esse episódio da biografia de Vieira de Mello lançam luz apenas sobre o que foi uma tarefa significativamente árdua, desenvolvida por mais de dois anos: restaurar a paz e a segurança; estabelecer as condições para um governo autônomo; criar políticas de desenvolvimento duráveis e governar o território no cotidiano.

“Sergio” liderou os esforços da Missão no Timor e respondeu aos mais variados desafios e resistências de autoridades locais, conseguindo o que em primeiro momento parecia impossível: consolidar um Estado independente e construir as bases de uma paz duradoura com os indonésios.

Já em 2003, o que sucede ao atentado à Missão em Bagdá, e a retirada dessa em seguida, mergulhou o Iraque em um intenso período de violentas lutas sectárias. Diversas organizações e suas lideranças se valeram do aprofundamento da instabilidade em uma série infindável de atentados às forças de ocupação e a grupos políticos e étnicos rivais. Quase duas décadas depois, é difícil encontrar indícios de sucesso quanto aos objetivos almejados pela coalizão. O Iraque dilacerado se tornou um elemento de incerteza adicional em um instável complexo regional de segurança, corroborado pelo surgimento do Estado Islâmico.

Há certamente muito a se falar sobre a personalidade e sobre a biografia desse ilustre negociador e internacionalista brasileiro. O filme é apenas um convite, um chamado a conhecer mais do que Sergio tinha de melhor: a sua percepção aguçada sobre o potencial das relações humanas e sua busca incansável por encontrar espaços para o diálogo e para a promoção da paz e da justiça social, características raras nas lideranças globais atuais e tão necessárias em tempos de crise.

Saiba mais

Livro: POWER, Samantha. O homem que queria salvar o mundo: uma biografia de Sergio Vieira de Mello. Companhia das Letras, 2008.

Documentário: Sergio, 2009. HBO/Netflix, 1h34min. Dirigido por Greg Baker.

Artigo por Mariana Klemig, professora do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário IESB

Co-autoria de Marco Meneses, professor e coordenador do curso de Relações Internacionais, professor do curso de Ciência Política do Centro Universitário IESB

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